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A era da (des)informação: os riscos da democracia brasileira no século XXI Andrei Ferreira Fredes Doutorando em Direito mediante cotutela internacional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pela Universidad de Granada (UGR). Professor de Hermenêutica Jurídica e Direito Constitucional. Advogado. Mariana Godinho Borges Advogada especialista em Direito e Tecnologia Resumo: A massiva utilização dos dados pessoais atualmente e suas implicações no processo democrático são os pontos centrais de discussão do presente estudo, tendo como objetivo analisar as implicações jurídicas da excessiva captura de dados e sua aplicação para manipulação da comunicação e da democracia no Estado Democrático de Direito, dessa forma, o artigo se divide em quatro momentos; o primeiro delimita a conceituação dos dados pessoais; o segundo momento aborda a questão da utilização indevida dos dados pessoais e a influência no comportamento humano; o terceiro busca estabelecer uma relação entre a comunicação, a internet e a democracia; finalmente, o quarto momento aborda como a desinformação na era da informação fomenta as técnicas de tratamento de dados pessoais e a veiculação de conteúdo manipulado. Palavras-chave: Dados pessoais / Perfilamento / Informação / Democracia Abstract: The massive use of personal data today and its implications for the democratic process are the central points of discussion of this study, having as objective to analyze law consequences of the excessive data capture and its application for manipulating communication and democracy at the Rule of Law, thus, the article is divided in four moments; the first delimits the conceptualization of personal data; the second moment addresses the issue of the misuse of personal data and the influence on human behavior; the third moment seeks to establish a relationship Scientia Iuridica – Tomo LXIX, 2020, n.º 354 SCIENTIA IVRIDICA between communication, the internet and democracy; finally, the fourth moment discusses how misinformation in the information age fosters techniques for processing personal data and serving manipulated content. Keywords: Personal Data / Profiling / Information / Democracy Introdução O tema central deste estudo concerne à utilização massiva e indevida dos dados pessoais na atualidade, bem como ao seu potencial em influenciar o processo democrático de um país por meio de técnicas cada vez mais aprimoradas, como, por exemplo, o profiling. Sabe-se que grande parte da população está diariamente conectada à internet, variadas plataformas digitais são acessadas gratuitamente, todavia, o que não se conhece é que, de certa forma, não há gratuidade. Cada acesso realizado pode deixar uma espécie de rastro, cada rastro é constituído por dados e esses dados são compostos por informações pessoais, como nome, estado civil, idade, data de nascimento, páginas que acessamos com frequência, comportamentos virtuais como curtidas, compartilhamentos ou até mesmo conversas privadas, podendo vir a servir de parâmetro para a elaboração de um perfil da personalidade online. A partir daí, uma má gestão desses dados pode trazer graves danos ao usuário e à população em geral, indo desde a publicidade online destinada para vendas, dados armazenados em hospitais, empresas e órgãos públicos até propagandas eleitorais digitais. A justificativa para a realização deste estudo reside na preocupação advinda dos malefícios que a utilização indevida desses dados pode ocasionar, tendo em vista que com o decorrer dos tempos e sua constante oscilação algumas facetas do mundo virtual, não percebidas antes, estão sendo usadas de formas maliciosas. A gestão indevida de dados pessoais pode influenciar comportamentos e expressões de vontade, podendo ser danoso ao livre exercício da personalidade do usuário, uma vez que este pode estar vulnerável a manipulações, através de interações viciadas. Destarte, sendo a internet um dos principais meios de comunicação existentes no mundo, grande parcela da população está diariamente conectada, rece- 344 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO bendo, por ali, a maior parte das informações, que, possivelmente, formarão as suas opiniões. Aqui, faz-se uma conexão importante, sendo um dos pontos-chave deste trabalho, a ligação entre democracia e comunicação. A comunicação é um dos meios pelo qual é expressa a vontade de uma pessoa, e uma democracia constitui-se, entre outros elementos, pela vontade geral de um povo. Logo, se existe parcela da população que desconhece os direitos sobre os seus dados pessoais, bem como se esses dados são utilizados de forma indevida, envolvendo manipulação, ferindo o livre exercício da personalidade do indivíduo e, consequentemente, ocasionando vício na expressão de vontade de um povo, podemos ter em vista que há a possibilidade, em tempos de decisões eleitorais, que a democracia seja posta em jogo. Em relação à metodologia, o presente artigo foi desenvolvido baseado em pesquisa bibliográfica documental, através de livros e artigos científicos acerca do assunto abordado. Quanto ao método de interpretação, desloca-se através do fenomenológico, não por uma escolha arbitrária, mas sim por entender que a fenomenologia, com sua perspectiva de círculo hermenêutico que envolve a norma e o mundo, é a única capaz de responder a questões complexas como as aqui propostas, evitando assim cair no fetiche da codificação ou no relativismo, ambos resultado de posturas positivistas. Assim, o primeiro capítulo busca estabelecer um conceito de dados pessoais, apresentando conceitos doutrinários e definições presentes em legislação nacional e internacional. Por sua vez, a segunda parte pretende analisar como a crescente captura de dados no mundo digital pode abrir portas para o tratamento indevido das informações e a posterior utilização para construção de perfis comportamentais e veiculação de conteúdos viciados. A terceira parte deste estudo visa constituir uma ligação entre a comunicação, a internet e a democracia, explanando sobre como os processos de comunicação podem sofrer influências perante as inovações tecnológicas e como isso pode atingir os sentidos da democracia. Por fim, a quarta parte explana sobre a desinformação na era da informação, o fenômeno das fake news e a era da pós-verdade, estabelecendo uma relação entre tais acontecimentos informacionais, a utilização indevida dos dados pessoais e a democracia. 345 SCIENTIA IVRIDICA Os dados pessoais A evolução tecnológica vem fazendo alterações na sociedade, desde a forma como nos comunicamos até à forma como vivemos. É nessa perspectiva que a utilização massiva de dados pessoais surgiu, mas o que são dados pessoais? Sabe-se que os dados pessoais sempre existiram, uma vez que consistem em informações relacionadas a alguma pessoa, todavia, o que alterou significativamente o modo como enxergamos os dados pessoais foi o aumento do fluxo de informações com o estabelecimento do mundo digital1, uma vez que as novas tecnologias passaram a permitir uma captura de dados sem precedentes, bem como as variadas capacidades de análise, possibilitaram a obtenção de variadas informações relevantes no mundo social. A conceituação do que é um dado pessoal parece simples, porém, considerando que é a partir de seu conceito que é dimensionada e efetivada o tamanho de sua proteção sob o aspecto jurisdicional, torna-se uma tarefa bastante complexa2. Conforme aborda BIONI3, o conceito de dados pessoais possui duas vertentes, uma reducionista e outra expansionista. A primeira versa sobre uma proteção de dados mais restritiva, onde o dado pessoal somente é caracterizado como tal e, consequentemente, possui proteção, quando é diretamente vinculado a uma pessoa identificada. Já a segunda linha de pensamento, o expansionismo, é representada pelo alargamento e flexibilização do conceito, uma vez que considera dado pessoal toda a informação que possa identificar o seu detentor, isto é, o vínculo entre o dado e o indivíduo não é estabelecido de imediato, mas pode vir a ser. Para DANILO DONEDA4, os conceitos de dado pessoal e informação por vezes se sobrepõem, uma vez que são coisas diferentes. O Autor argumenta que o dado seria uma espécie mais primitiva, antes de ser transmitida, consistindo em uma 1 DANILO DONEDA, Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de proteção de dados, 2.ª ed., São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2019, pp. 135-137. 2 BRUNO RICARDO BIONI, Xeque-mate: o tripé da proteção de dados pessoais no jogo de xadrez das iniciativas legislativas no Brasil, São Paulo, USP-Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o acesso à informação, Relatório de Pesquisa, 2015, p. 17. 3 BRUNO RICARDO BIONI, Xeque-mate: o tripé da proteção de dados pessoais no jogo de xadrez das iniciativas legislativas no Brasil, cit., p. 17. 4 DANILO DONEDA, Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de proteção de dados, cit., p. 136. 346 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO pré-informação. Já a informação seria o resultado da captura desses dados, após processamento, possuindo um conteúdo mais delineado. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), legislação brasileira que trata sobre a proteção de dados, em seu art. 5.º, traz o conceito de dado pessoal, bem como suas vertentes. Assim, fazendo uma análise da legislação supramencionada, percebe-se uma classificação dos dados, sendo que dado pessoal seria toda a informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável. Em uma segunda classificação, estão os dados sensíveis, os quais são referentes a informação de origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou organização de caráter religioso, filosófico ou político, dados referentes à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. Por fim, há a previsão do dado anonimizado, sendo aquele que é relativo ao titular que não possa ser identificado5. Tal classificação tem por objetivo delimitar o âmbito de proteção de cada uma das espécies de dados pessoais e diminuir o seu potencial danoso ao indivíduo. Já a Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho traz, no art. 3.º, o conceito de dado pessoal como sendo: “1) «Dados pessoais», informações relativas a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador como, por exemplo, um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores em linha ou um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”6. Lei 13.709, de 14/8/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2018. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm (acesso em 13/6/2020). 6 Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27/4/2016, relativa ao tratamento de dados pessoais para efeitos do exercício de competências penais. Disponível em https://eurlex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32016L0680 (acesso em 15/2/2021). A redação é bastante similar à definida pelo Regulamento (UE) n.º 2016/679, no seu art. 4.º: “1) «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”. 5 347 SCIENTIA IVRIDICA Assim, dado pessoal poderia ser caracterizado como uma informação sobre o indivíduo. Não obstante, questiona-se no que consistem essas informações sobre os indivíduos e quais as suas formas de utilização. Sabemos que nossas informações pessoais básicas são dados como CPF, RG, endereço, telefone, nome, sexo, estado civil, entre outros, mas, atualmente, com a implementação das redes sociais como nova forma de comunicação e meio de expressão, as atitudes online como desejos, comportamentos, curtidas e compartilhamentos constituem uma nova fonte de informação muito relevante sobre o indivíduo7, uma vez que o conjunto de todas essas informações podem servir para o tratamento dos dados pessoais, o qual, por sua vez, pode ter diversas utilizações, tanto em um aspecto bom quanto ruim. Aqui, é válido mencionar novamente o art. 5.º da LGPD, o qual traz a definição de conceitos importantes para o tema, como em seu inciso X que versa sobre o que é o tratamento de dados pessoais: “X – tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração”. Por sua vez, o Regulamento (UE) n.º 2016/679 Parlamento Europeu e do Conselho (RGPD), no seu art. 4.º, conceitua tratamento com sendo: “2) «Tratamento», uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição”8. Ademais, vale ressaltar o conceito trazido pelo Regulamento supramencionado, no mesmo art. 4.º, no que concerne a definição de perfis: RAMON SILVA COSTA/SAMUEL RODRIGUES DE OLIVEIRA, “Os direitos da personalidade frente a sociedade de vigilância: privacidade, proteção de dados pessoais e consentimento nas redes sociais”, in Revista Brasileira de direito civil em perspectiva, Belém, v. 5, n. 2, p. 38, jul./dez. 2019, pp. 25-33. 8 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27/4/2016 – Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri= CELEX:32016R0679&from=PT (acesso em 15/2/2021). 7 348 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO “4) «Definição de perfis», qualquer forma de tratamento automatizado de dados pessoais que consista em utilizar esses dados pessoais para avaliar certos aspetos pessoais de uma pessoa singular, nomeadamente para analisar ou prever aspetos relacionados com o seu desempenho profissional, a sua situação económica, saúde, preferências pessoais, interesses, fiabilidade, comportamento, localização ou deslocações”. Analisando no que consiste um dado pessoal e como este pode ser utilizado, tem-se que a grande questão na proteção dessas informações reside em seu caráter personalíssimo, uma vez que, quando um dado é atrelado a uma pessoa, ele pode revelar um conjunto de características individuais que a diferenciam das demais. Logo, temos que ao final há uma proteção da própria pessoa e da sua personalidade9. Por fim, importa salientar aqui neste tópico que os dados pessoais ou informações sobre um indivíduo não são o problema da equação, mas sim a dimensão das suas possibilidades de uso, de forma não regulada, ilimitada e má intencionada, que venha a colocar em risco o livre exercício da personalidade da pessoa10. Os riscos da utilização indevida dos dados pessoais: o profiling e o comportamento humano Os dados atualmente estão popularmente conhecidos como o novo petróleo, uma nova estrutura econômica que vem a cada dia sendo mais aprimorada. As informações pessoais dos indivíduos tornaram-se um produto de alto valor. O implemento da tecnologia e a possibilidade da compilação e análise de grandes números de dados pessoais originam um – novo – modelo de economia, onde os cidadãos são meros espectadores perante a coleta de seus próprios dados11. Sabe-se que a maioria das plataformas digitais são acessadas, em tese, de forma gratuita, todavia, a situação não é tão simples assim. Para que uma plataforma seja 9 MATHEUS FALK, A necessidade proteção aos dados pessoais no direito brasileiro: tutela jurídica na era da modernidade líquida e da surveillance, 2017, Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Direito, Curitiba, 2017, p. 61. 10 LEONARDO MARTINS, Tribunal Constitucional Federal alemão: decisões anotadas sobre direitos fundamentais, vol. 1: Dignidade humana, livre desenvolvimento da personalidade, direito fundamental à vida e à integridade física, igualdade, São Paulo, Fundação Konrad Adenauer, 2016, p. 59. 11 BRUNO RICARDO BIONI, Proteção de dados pessoais: as funções e limites do consentimento, Rio de Janeiro, Forense, 2019, p. 39. 349 SCIENTIA IVRIDICA economicamente viável e rentável os clientes de um dos lados precisam representar algum valor para os clientes do outro lado, como, por exemplo, uma plataforma que administra a relação entre o usuário e o anunciante. Dessa forma, após a experiência da sociedade nas plataformas digitais, pode-se advertir que, em um primeiro momento, uma plataforma não tem um custo aparente, no entanto, analisando melhor, é possível visualizar que, na maioria das vezes, existem custos obscuros para a utilização dos serviços, quais sejam, os dados pessoais dos usuários12. Os dados estão disponíveis em vários lugares hoje em dia. BRITANY KAYSER, ex-integrante da empresa Cambridge Analytica, relata uma frase dita pelo ex-gerente da empresa, a qual demonstra como as empresas especialistas em marketing comportamental estão visualizando os dados pessoais: “Bater de porta em porta não é a única maneira de obter dados agora. Os dados estão por toda a parte. E agora todas as decisões são baseadas neles.”13. Para ilustrar ainda melhor essa nova realidade, onde a cada movimento que é realizado deixa-se uma espécie de rastro digital, uma informação sobre si mesmo, JARON LANIER14 expõe: “Os algoritmos se empanturram de dados sobre você a cada segundo. Em que tipos de link você clica? Quais são os vídeos que vê até o fim? Com que rapidez pula de uma coisa a outra? Onde você está quando faz essas coisas? Com quem está se conectando pessoalmente e on-line? Quais são as suas expressões faciais? Como o tom da sua pele muda em diferentes situações? O que você estava fazendo pouco antes de decidir comprar ou não alguma coisa? Você vota ou se abstém?”. Todas essas informações e muitas outras têm sido comparadas a leituras semelhantes sobre a vida de milhões de pessoas por meio de uma espionagem maciça. Os algoritmos correlacionam o que você faz com o que quase todas as outras pessoas têm feito. Assim, a massiva coleta de dados e os desenvolvimentos tecnológicos cada vez mais constantes para seu armazenamento e tratamento abrem novas possibi- 12 JULIA KREIN, “Novos trustes na era digital: efeitos anticompetitivos do uso de dados pessoais pelo Facebook”, in Revista de Defesa da Concorrência, v. 6, n. 1, p. 198-231, mai. 2018, p. 202. 13 BRITTANY KAISER, Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque, trad. de Roberta Clapp e Bruno Fiuza, 1.ª ed., Rio de Janeiro, Harper Collins, 2020, p. 73. 14 JARON LANIER, Dez argumentos para você deletar suas redes sociais, trad. de Bruno Casotti, 1.ª ed., Rio de Janeiro, Intrinseca, 2018, p. 13. 350 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO lidades para a utilização de técnicas computacionais que gerem a melhor utilização possível das informações obtidas. A técnica chamada profiling, traduzida como perfilamento online, é uma ferramenta que, dentre tantas outras, permite a utilização da captação de dados pessoais para diversas abordagens, como, por exemplo, o microtargeting. Conforme preceitua DONEDA15, tal método consiste na construção de perfis de comportamento de um indivíduo, o qual é elaborado a partir dos dados pessoais disponibilizados ou captados, como bem sintetiza o autor: «Com ela, os dados pessoais são tratados com o auxílio de métodos estatísticos e de técnicas de inteligência artificial, com o fim de se obter uma “metainformação”, que consistiria numa síntese dos hábitos, preferências pessoais e outros registros da vida desta pessoa. O resultado pode ser utilizado para traçar um quadro das tendências de futuras decisões, comportamento e destino de uma pessoa ou grupo». A partir desse aspecto, variadas são as utilizações da elaboração de um perfil online, podendo ser aplicados desde o âmbito mercadológico, no direcionamento de marketing comercial, ou até influenciar na operação da política e das eleições, direcionando um grupo de pessoas a um comportamento esperado16. Como podemos ver, esse ciclo informacional proporcionado pelos avanços tecnológicos possui um ativo de extrema importância: os dados pessoais. Há um ciclo porque podemos observar a seguinte linha de acontecimentos: acesso à plataforma –> fornecimento consciente ou inconsciente dos dados –> captação e tratamento dos dados –> informação compilada e analisada do próprio usuário pode ser convertida em forma de publicidade ou pode auxiliar na classificação dos conteúdos que aparecem com maior frequência para ele. Visualizando assim, o dado pessoal é o ator de maior importância nessa cadeia e, por isso, a grande importância de sua proteção. Conforme abordado acima, o profilling é a técnica que logrará elaborar um perfil do indivíduo. Tal método fará isso com base no cruzamento dos dados coletados com outros dados já existentes e com base em estatísticas, sendo que os algoritmos são considerados uma peça-chave para esse caminho. Assim, no final DANILO DONEDA, Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de proteção de dados, cit., p. 151. 16 ANA CLÁUDIA HOSTERT, Proteção de dados pessoais na internet: a necessidade de lei específica no ordenamento jurídico brasileiro, 2018, 87 f., Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018, p. 31. 15 351 SCIENTIA IVRIDICA do processo há a compilação de muitos dados, resultando em uma informação sobre preferências do usuário, o que, por sua vez, possibilitará uma previsão comportamental do indivíduo17. Nessa perspectiva, LAURA SCHERTEL aborda: “[...] a construção de perfis compreende a reunião de inúmeros dados sobre uma pessoa, com a finalidade de se obter uma imagem detalhada e confiável, visando, geralmente, à previsibilidade de padrões de comportamento, de gostos, hábitos de consumo e preferências do consumidor”18. Com a elaboração do perfil pronta, é possível, então, a organização de um padrão comportamental, bem como a previsão de uma tendência de comportamento de um usuário ou de um grupo de usuários com atitudes similares19. Por meio da técnica do perfilamento as empresas de marketing podem produzir um conteúdo personalizado, com base no perfil que foi montado do indivíduo ou de um grupo, e veiculá-la, customizando e direcionando, assim, conteúdos preestabelecidos que induzam o usuário a clicar; tal estratégia é conhecida como microtargeting ou publicidade direcionada. Ao longo dos anos a ciência por trás das publicidades mercadológicas foi percebendo que a comunicação em massa não era mais tão eficiente, viam-se gastando recursos que não traziam tanto retorno, vez que se desperdiçava esforços com alguém que não estaria tão inclinado à compra de determinado produto. Foi nesta linha de pensamento que surgiu a ideia da publicidade direcionada, onde seria possível a identificação prévia dos consumidores que efetivamente poderiam ter interesse em comprar o serviço oferecido, para que assim pudessem canalizar os esforços em um público específico20. Assim, observando os dizeres de BRUNO BIONI, “[...] a publicidade direcionada é uma prática que procura personalizar, ainda que parcialmente, tal comunicação social, correlacionando-a a um determinado fator que incrementa a possibilidade de êxito da indução ao consumo”21. FERNANDO INGLEZ DE SOUZA MACHADO, Privacidade e proteção de dados pessoais na sociedade da informação: profiling e risco de discriminação, 2018, Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, p. 129. 18 LAURA SCHERTEL MENDES, Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito fundamental, São Paulo, Saraiva, 2014. 19 FERNANDO INGLEZ DE SOUZA MACHADO, Privacidade e proteção de dados pessoais na sociedade da informação: profiling e risco de discriminação, cit., p. 130. 20 BRUNO RICARDO BIONI, Proteção de dados pessoais: as funções e limites do consentimento, cit., p. 41. 21 BRUNO RICARDO BIONI, Proteção de dados pessoais: as funções e limites do consentimento, cit., p. 42. 17 352 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO Com a viabilidade da coleta massiva de dados pessoais na sociedade da informação, a construção de um perfil por meio dos métodos elencados acima pode representar uma pessoa de forma virtual. Tal reprodução pode ser seu único aspecto palpável perante terceiros, podendo, inclusive, confundir-se com o próprio indivíduo22. Logo, a elaboração do perfil de uma pessoa a partir da captação de suas informações constitui-se, atualmente, como uma representação da personalidade do indivíduo no mundo digital23, os ímpetos mais íntimos e privados estão esboçados nas redes que são usadas diariamente, sendo um elo entre a pessoa e o ambiente digital externo. Portanto, partindo da premissa na qual o usuário é monitorado e fornece dados das mais variadas formas todos os dias, os quais são analisados e utilizados para personificação do conteúdo, pode-se considerar que tais fatores podem causar uma diminuição na esfera da liberdade do indivíduo, uma vez que as suas possibilidades de escolha estão cerceadas pela visão que é formada a partir do profilling, bem como, pode-se notar que há uma barreira na chegada de informações até o usuário. Assim, quando tais técnicas ultrapassam a esfera do marketing de vendas e começam a ser utilizadas no âmbito político, coloca-se em risco outros importantíssimos direitos atinentes ao ser humano. São direitos previstos constitucionalmente a liberdade de expressão, a privacidade e os atinentes à personalidade, todos estes inerentes ao ser humano e vinculados com o princípio basilar da dignidade da pessoa humana. Estes três direitos estão intrinsecamente ligados ao cerne desta questão, a partir do facto de que todos possuem o direito de se expressar livremente, inclusive no meio digital, seguindo a análise, igualmente, todos possuem a prerrogativa do resguardo de sua intimidade e, por fim, cada ser humano possui direitos atinentes à sua personalidade (a honra, a imagem, o nome e a integridade física e psíquica)24. DANILO DONEDA, Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de proteção de dados, cit., p. 152. 23 RAMON SILVA COSTA/SAMUEL RODRIGUES DE OLIVEIRA, “Os direitos da personalidade frente a sociedade de vigilância: privacidade, proteção de dados pessoais e consentimento nas redes sociais”, cit., p. 32. 24 RAMON SILVA COSTA/SAMUEL RODRIGUES DE OLIVEIRA, “Os direitos da personalidade frente a sociedade de vigilância: privacidade, proteção de dados pessoais e consentimento nas redes sociais”, cit., pp. 29-30. 22 353 SCIENTIA IVRIDICA Feita essa ligação fundamental, observa-se que a captação de dados pessoais e a utilização de técnicas para elaboração de um perfil dão margem para o direcionamento manipulado de informações externas que chegam até ao indivíduo, tendo em vista que, a partir de programas que preveem o comportamento do usuário, os administradores dessas tecnologias podem veicular notícias ou informações preestabelecidas, criando uma espécie de bolha digital, ferindo a liberdade e a livre construção da identidade da pessoa25. O fenômeno da chamada “bolha digital” pode ser exemplificado pelo modo como a rede social Facebook disponibiliza os conteúdos no feed de notícias ou linha do tempo. As plataformas passaram a utilizar os algoritmos para classificar conteúdos que poderão ser de maior interesse do usuário, os quais aparecerão com maior prevalência quando este acessar a rede26. Desta forma, os usuários acabam presos em espaços digitais em que são mostrados conteúdos que se adequem com suas preferências e opiniões, ademais, tais conteúdos podem ser utilizados também para induzir a determinados pensamentos. Nesse sentido, conforme RODOTÀ27 explica, a autonomia do indivíduo na sociedade da informação deve ser reivindicada, colocando em foco a “autodeterminação informativa” do cidadão, devendo este ter o direito de controle sob suas informações e como elas são captadas e controladas. O Tribunal Constitucional Alemão, no ano de 1983, ao decidir sobre a constitucionalidade da Lei de Recenseamento de População, Moradia e Trabalho, reconheceu o direito à autodeterminação informativa, colocando o cidadão como peça principal no processamento de seus dados pessoais28, afirmando: “[...] o moderno processamento de dados pessoais configura uma grave ameaça à personalidade do indivíduo, na medida em que possibilita o armazenamento ilimitado de dados, bem como permite a sua combinação de modo a for25 DANILO DONEDA, Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de proteção de dados, cit., p. 152. 26 ELIAS JACOB DE MENEZES NETO, Surveillance, democracia e direitos humanos: os limites do Estado na era do Big Data, 2016, Tese (Doutorado) – Universidade Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2016, p. 208. 27 STEFANO RODOTÀ, A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje, Maria Celina Bodin de Moraes (organização, seleção e apresentação), trad. de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda, Rio de Janeiro, Renovar, 2008, pp. 15-17 28 BRUNA PINOTTI GARCIA OLIVEIRA, “Inteligência Artificial e Proteção de dados: sobre a autodeterminação informativa e a manipulação informacional por machine learning”, in Humanidades e Tecnologias (FINOM), v. 26, n. 1, pp. 162-186, jul./set. 2020, p. 166. 354 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO mar um retrato completo da pessoa, sem a sua participação ou conhecimento. Nesse contexto, argumentou que a Constituição alemã protege o indivíduo contra o indevido tratamento de dados pessoais, por meio do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, segundo o qual o indivíduo tem o poder para determinar o fluxo de suas informações na sociedade”29. Destarte, chega-se no momento em que se faz necessário abordar como o livre exercício da personalidade é de grande importância para uma sociedade democrática e como ela pode vir a ser afetada pela ingerência dos dados pessoais. Como exposto acima, as novas técnicas do mercado publicitário podem ser aplicadas na corrida eleitoral, o perfilamento online torna possível uma classificação do eleitorado com base em suas informações pessoais, onde a propaganda eleitoral pode ser personalizada de acordo com as predileções daquele grupo de eleitores, proporcionando uma maior chance de persuadi-lo. Essa nova forma de executar a propaganda política é muito mais eficaz do que a propaganda política clássica e genérica, uma vez que aborda as prioridades específicas do eleitor30. Inobstante, não podemos deixar de observar que a internet ampliou a democratização do processo eleitoral, uma vez que estabeleceu um contato mais direto entre o candidato e o eleitor, todavia, da mesma forma que permite uma maior liberdade de informação, também possibilita a utilização maliciosa de técnicas, que, quando descobertas por pessoas mal intencionadas, podem causar prejuízos à sociedade e à democracia. Acontecimentos que marcaram os últimos anos demonstraram e alertaram sobre as possibilidades de manipulação da informação que podem afetar os direitos humanos e o processo democrático. O caso da Cambridge Analytica, empresa britânica especializada em marketing político que esteve presente nas eleições estadunidenses de 2016, baseou-se em dados coletados do Facebook, realizando a análise da personalidade dos indivíduos, com a formação de um perfil comportamental, para posteriormente delimitar o público e direcionar os conteúdos31. 29 LAURA SCHERTEL MENDES, Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito fundamental, cit. 30 NATÁLIA RIBEIRO LEVY BOQUADY, Democracia e internet: os impactos das mídias digitais nas eleições de 2018, 2018, 86 f., Monografia (graduação) – Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, 2018, p. 40. 31 BRUNA PINOTTI GARCIA OLIVEIRA, “Inteligência Artificial e Proteção de dados: sobre a autodeterminação informativa e a manipulação informacional por machine learning”, cit., p. 173. 355 SCIENTIA IVRIDICA Para melhor situar a questão apresentada acima, BRITTANY KAISER expõe como os testes de personalidade foram utilizados pela empresa: Usando ferramentas analíticas para entender as personalidades complexas dos indivíduos, os psicólogos conseguiriam definir o que os motivava à ação. Em seguida, a equipe de criação elaborou mensagens específicas para esses tipos de personalidade em um processo chamado “microtargeting comportamental”32. A utilização da informação como arma política tem uma linha tênue, uma vez que o limite entre mentiras, informação e imaginação está cada vez mais difuso. Desse modo, o que nasceu para democratizar o acesso à informação e a participação social em debates políticos está fomentando a polarização, os discursos de ódio e crise de legitimidade política. Toda a questão posta em cheque, evidentemente, não é consequência da evolução da internet, mas sim pelo uso que é feito dela e pela política que as sociedades estão construindo, trazendo à tona, muitas vezes, o pior do ser humano33. Dessa forma, a proteção dos dados pessoais é requisito essencial para a concretização de uma democracia plena34, pois o poder advindo das informações na sociedade contemporânea atinge múltiplos direitos do ser humano, os quais, por sua vez, são decorrentes da tutela da pessoa humana. Comunicação, Internet e Democracia: processo democrático em risco? O desenvolvimento da tecnologia e a sua má utilização podem influenciar na tomada de decisões de uma coletividade e, consequentemente, influenciar no processo democrático de uma Nação. Assim, observa-se que há uma ligação entre comunicação, internet e democracia, onde os processos de comunicação foram sendo influenciados pelo advento da internet, sendo, portanto, de grande relevância para a construção de pensamentos e atitudes, o que, por conseguinte, se reflete nos comportamentos políticos. 32 BRITTANY KAISER, Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque, cit., p. 87. 33 MANUEL CASTELLS, A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade, trad. de Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro, Zahar, 2003, p. 162. 34 CAITLIN SAMPAIO MULHOLLAND, “Dados pessoais sensíveis e a tutela de direitos fundamentais: uma análise à luz da lei geral de proteção de dados (lei 13.709/18)”, in Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 19, n. 3, p. 173, set./dez., 2018, p. 173. 356 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO O implemento da internet trouxe grandes mudanças na estrutura social; entre essas alterações está a forma como nos comunicamos. Hoje em dia a internet virou um dos principais meios de comunicação do mundo, conectando localizações remotas, que antes possuíam comunicação escassa. A tecnologia conectou o planeta, ampliou significativamente a palavra liberdade, abarcando a liberdade de expressão e o direito de informação, aumentando a democratização desses processos, uma vez que, agora, milhões de pessoas têm acesso a notícias e acontecimentos mundiais em questão de pouco tempo e das mais variadas fontes35. Conforme destaca o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, na Pesquisa Nacional por amostra de domicílio contínua – PNAD, referente ao acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal em 2018: O uso da internet vem cada vez mais se expandindo. No começo, essa rede era utilizada nas universidades e centros de estudo, em seguida chegou ao mundo dos negócios e, depois, ao âmbito doméstico. Os resultados de 2016 a 2018 mostraram que a utilização da internet nos domicílios estava em contínuo e expressivo crescimento, que foi mais acelerado em área rural. Em 2017, a internet era utilizada em 74,9% dos domicílios do País e este percentual subiu para 79,1%, em 2018. Hoje em dia a tecnologia é regra, os indivíduos estão sempre conectados, seu uso é cotidiano, muitas vezes vinte e quatro horas por dia, tudo é registrado. As mídias sociais sabem aonde vamos, que horas acordamos e que horas vamos dormir, o que gostamos, o que não gostamos, entre outras variadas atitudes e comportamentos que são captados durante o nosso dia a dia36. Os algoritmos passam a conhecer todas as nossas informações, podendo fazer previsões sobre ações37. Nesse sentido, conforme aponta CASTELLS: “Atividades econômicas, sociais, políticas, e culturais essenciais por todo o planeta estão sendo estruturadas pela Internet e em torno dela, como por outras redes de computadores. De fato, ser excluído dessas redes é sofrer uma das formas mais danosas de exclusão em nossa economia e em nossa cultura”38. 35 NATÁLIA RIBEIRO LEVY BOQUADY, Democracia e internet: os impactos das mídias digitais nas eleições de 2018, cit., p. 13. 36 RAMON SILVA COSTA/SAMUEL RODRIGUES DE OLIVEIRA, “Os direitos da personalidade frente a sociedade de vigilância: privacidade, proteção de dados pessoais e consentimento nas redes sociais”, cit., p. 37. 37 RAMON SILVA COSTA/SAMUEL RODRIGUES DE OLIVEIRA, “Os direitos da personalidade frente a sociedade de vigilância: privacidade, proteção de dados pessoais e consentimento nas redes sociais”, cit., p. 33. 38 MANUEL CASTELLS, A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade, cit., p. 9. 357 SCIENTIA IVRIDICA É notável que a comunicação tem uma importante ligação com a democracia. A comunicação é um dos meios pelo qual o indivíduo expressa sua vontade, por sua vez, a democracia constitui-se, dentre outros elementos, pela vontade geral de um povo. Assim, tendo em vista que a tecnologia está intimamente ligada com a forma como nos comunicamos, suas transformações podem alcançar os sentidos da democracia39; além disso, há uma intrínseca conexão entre democracia e ciberespaço, uma vez que os dois possuem aspectos em comum e proporcionam liberdade à coletividade40. Com efeito, nas palavras de MANUEL CASTELLS, “Comunicação é o compartilhamento de significado por meio da troca de informações.”41. A base da sociedade, mais especificadamente as instituições que a organizam, são efetivadas por meio de relações estabelecidas por poder, as quais são extensivamente moldadas na mentalidade das pessoas por meio de processos de comunicação42. Com os desenvolvimentos tecnológicos e a internet se tornando o principal meio de comunicação no mundo em tempo mais rápido do que todas as tecnologias da comunicação na história, a comunicação foi sendo estendida e cada vez mais aprofundada, originando uma nova vertente, caracterizada pela interatividade, possibilitando a troca de mensagens em tempo real entre várias pessoas e, ainda, exercendo um papel essencial no processo de tomada de poder, influenciando tanto nas instituições, quanto no corpo social43. Em nossa sociedade, as redes de comunicação organizam a comunicação social, sendo esta última compreendida como um conjunto de princípios e atitudes que são expostos em sociedade, nesse segmento, tal organização é o que influencia o comportamento individual e coletivo, assim, pode-se entender que a fonte de poder na sociedade em rede é o poder da comunicação, conforme o entendimento de CASTELLS: NATÁLIA RIBEIRO LEVY BOQUADY, Democracia e internet: os impactos das mídias digitais nas eleições de 2018, cit., p. 9. 40 MARCELO GUERRA MARTINS/VICTOR AUGUSTO TATEOKI, “Proteção de dados pessoais e democracia: fake News, manipulação do eleitor e o caso da Cambridge Analytica”, in Revista eletrônica direito e sociedade, Canoas, v. 7, n. 3, p. 145, out. 2019, p. 138. 41 MANUEL CASTELLS, O poder da comunicação, trad. de Vera Lucia Mello Joscelyne, 4.ª ed., São Paulo/Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2019, p. 101. 42 MANUEL CASTELLS, O poder da comunicação, cit., p. 29. 43 MANUEL CASTELLS, O poder da comunicação, cit., pp. 33-36 e 101. 39 358 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO “Como as redes neurais de nosso cérebro são ativadas por meio da interação em rede com seu ambiente, inclusive o social, essa nova área de comunicação, em as formas variegadas, torna-se a principal fonte de sinais que levam à construção de significado na mente das pessoas. E como, em grande medida, o significado determina a ação, a comunicação do significado passa a ser a fonte de poder social por moldar a mente humana”44. As redes sociais são o novo palco de debates sociais, culturais e políticos, moldada a partir da liberdade de expressão, proporciona a todos que a acessam o direito de informar e ser informado45. Todavia, apesar de começar como grande possuidor de autonomia e liberdade, choca-se com uma realidade que está diante de nossos olhos: a vigilância46. Nessa conjuntura, as agências especializadas em captação de dados e marketing eleitoral sabem o que fazer para influenciar os usuários, seja pelo direcionamento de notícias personalizadas sob a perspectiva do perfil virtual do cidadão, sem nenhum contraponto, seja por meio da disseminação de desinformação. De qualquer forma, há um desequilíbrio de informações, o qual gera vício na formação do convencimento e, consequentemente, no comportamento do indivíduo47. A compreensão política é constituída emocionalmente, uma vez que a fusão das emoções, dos sentimentos e do raciocínio institui a tomada de decisões, determinando os processos da mente e, consequentemente, a maneira como agimos. Seguindo tal premissa, a elaboração da política deve ser um processo executado tendo sempre em mente o pleno exercício da capacidade cognitiva do indivíduo em seu melhor estado48, o que, como se pode ver, traz o problema da questão em foco, dado que, muitas vezes, o usuário não está em pleno exercício de sua capacidade cognitiva, tendo em vista a captura de suas informações que é utilizada para moldar tal cognição e comportamento. Em tempo, deve-se ter em mente que o mundo virtual é um mundo real, não é um mundo à parte ou imaginário, atualmente, vivemos rodeados de processos MANUEL CASTELLS, O poder da comunicação, cit., p. 190. NATÁLIA RIBEIRO LEVY BOQUADY, Democracia e internet: os impactos das mídias digitais nas eleições de 2018, cit., p. 15. 46 STEFANO RODOTÀ, A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje, cit., p. 145. 47 MARCELO GUERRA MARTINS/VICTOR AUGUSTO TATEOKI, “Proteção de dados pessoais e democracia: fake News, manipulação do eleitor e o caso da Cambridge Analytica”, cit., p. 145. 48 MANUEL CASTELLS, O poder da comunicação, cit., pp. 193-245. 44 45 359 SCIENTIA IVRIDICA digitalizados, trabalhamos na internet, criamos vínculos com outras pessoas, adquirimos conhecimento e informação, formamos e expressamos nossas opiniões, desempenhamos nossos direitos políticos, criamos uma nova cultura, sendo que tal espaço se torna o local em que processamos nossa criação de significado49. Logo, quando consideramos a possibilidade da influência nos processos de comunicação, os quais, por sua vez, constroem pensamentos, emoções e atitudes, o caminho começa a se tornar mais claro, podemos visualizar que a captação de dados pessoais com posterior utilização para direcionamento de publicidade política pode, sim, influenciar a maneira como pensamos e agimos diante de determinado conteúdo. Por esse ângulo, MANUEL CASTELLS50 aborda em seu livro um teste empírico realizado por Ted Brader, o qual foi elaborado a fim de testar o papel das emoções na determinação dos efeitos da propaganda política no comportamento do eleitor, onde ele elegeu duas emoções básicas, mas que são fontes de motivação fundamentais, quais sejam, o entusiasmo e o medo. A partir disso, suas descobertas foram no sentido de que a publicidade que provocava o entusiasmo mobilizava o eleitorado e polarizava suas escolhas, de modo a reafirmar as opiniões que já tinham e aumentar a rejeição do candidato da oposição. De outra banda, quando expostos a propagandas que incitavam o medo, foi observada uma introdução de incerteza no eleitor, o que aumentava as chances de alterações nas preferências políticas e, consequentemente no resultado do pleito. Informação é poder, a utilização dessa potência comunicacional como arma contra a própria população coloca em risco o exercício de diversos direitos. A facilidade na captura de dados pessoais somada às novas técnicas para o seu processamento resulta em um modelo de campanha sem precedentes. BRITTANY KAISER demonstra isso em um trecho de seu livro, onde apresenta, para um grupo político, os resultados da modelagem de dados: “Eles ficaram maravilhados com quão fácil era segmentar as pessoas de acordo com as suas personalidades e questões, para que depois fosse possível realizar o microtargeting. Mostrei a eles como isso poderia ser feito, se envolveria messaging individual por meio de campanhas digitais, mídias sociais e canvassing 49 50 360 MANUEL CASTELLS, A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade, cit., p. 208. MANUEL CASTELLS, O poder da comunicação, cit., p. 205. A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO porta a porta, ou se usaria dados de maneira mais genérica para determinar o conteúdo de discursos ou comícios. [...]”51. Portanto, com a ligação entre internet, comunicação e democracia feita, observou-se que o estabelecimento de padrões comportamentais, fruto da coleta e tratamento dos dados pessoais, pode ser utilizado para manipulação do conteúdo informacional que é direcionado ao usuário; ademais, foi possível verificar que os processos de comunicação constroem a sociedade e que é, dentre outras coisas, por meio dela que formamos nossa personalidade. Dessa forma, a proteção de dados se faz essencial para o estágio tecnológico em que nos encontramos, visando garantir que a informação chegue de forma limpa e sem manipulações, assegurando a livre formação da identidade e possibilitando o gerenciamento claro das informações, a fim de estimular o exercício da autodeterminação informativa, evitando que os comportamentos individuais ou coletivos sejam moldados por intermédio da inteligência artificial. Aqui, cabe uma passagem de YUVAL NOAH HARARI, no livro 21 lições para o século 21: “Nas mãos de um governo benigno, algoritmos poderosos de vigilância podem ser a melhor coisa que já aconteceu ao gênero humano. Mas os mesmos algoritmos de Big Data podem também dar poder a um futuro Grande Irmão, e podemos acabar em um regime de vigilância orwelliano, no qual todo mundo é monitorado o tempo todo”52. Por fim, cabe ressaltar que é pelo modo como a privacidade e os dados pessoais são tutelados por regras de direito e princípios que será delineado o caminho da sociedade e atual rumo ao futuro53. Assim, para o direito remanesce o dever de mediação do relacionamento entre os avanços tecnológicos e a proteção da pessoa, buscando estabelecer um equilíbrio no processo, mas sem vedar os crescimentos da tecnologia54. 51 BRITTANY KAISER, Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque, cit., p. 142. 52 YUVAL NOAH HARARI, 21 lições para o século 21, São Paulo, Schwarcz S.A, 2018, p. 67. 53 STEFANO RODOTÀ, A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje, cit., p. 142. 54 MÁRTIN MARKS SZINVELSKI/TAYNARA SILVA ARCENO/LUCAS BARATIERI FRANCISCO, Perspectivas jurídicas da relação entre big data e proteção de dados. Perspectivas em ciência da informação, São Leopoldo, v. 24, n. 4, pp. 132-144, out./dez., 2019, p. 142. 361 SCIENTIA IVRIDICA Desinformação na Era da informação Desde muito tempo a comunicação social foi estabelecida na sociedade, começando com apenas algumas pessoas se reunindo para debater arte, estabeleceu-se e evoluiu para a discussão racional da política55. No século XX surgiram os veículos de mídia, os jornais e as fotografias, fazendo com que a comunicação social se expandisse cada vez mais. Nessa conjuntura da época, existia uma espécie de hierarquização dos veículos de comunicação, a qual era pautada pela reputação de cada transmissor56. No decorrer dos anos e, principalmente, hoje em dia, podemos observar que as mídias sociais rompem esse sistema hierárquico, passando de um modelo de reputação para um modelo de engajamento; neste sentido explica BOQUADY: «Passa-se a priorizar, então, conteúdos apelativos, espalhafatosos e agressivos, de forma a chamar atenção da maior quantidade possível de pessoas, acumulando visualizações e likes, tornando-se “virais”, em detrimento de matérias longas e analíticas. Cada curtida e compartilhamento de conteúdos aumentam o seu valor, gerando receita às plataformas por meio da venda de anúncios»57. Desta forma, foi possível observar ao longo dos tempos uma mudança fundamental nas relações sociais e comunicacionais, onde a internet se tornou um dos principais meios de comunicação no mundo. Nessa seara, inaugurou-se o que MANUEL CASTELLS58 chama de autocomunicação em massa, a qual se caracteriza, portanto, como uma comunicação de massa que possibilita o envio de mensagens entre vários atores sociais, com um alcance quase ilimitado e onde sua produção depende tão-somente da decisão autônoma do remetente. Assim, o indivíduo conectado com as redes digitais passou a ser simultaneamente o emissor e o receptor dos conteúdos59. 55 REINHART KOSELLECK, Crítica e crise: Uma contribuição à patogênese do mundo Burguês, trad. de Luciana Villas-Boas Castelo-Branco, Rio de Janeiro, Contraponto, 1999, Edição Kindle. 56 Minicurso de Direito Digital, Aula 3, 2020 – Liberdade de expressão, fake news e responsabilidade dos intermediários, ministrado por CLARA IGLESIAS KELLER e JOÃO PAULO BACHUR, Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), Agosto de 2020. 57 NATÁLIA RIBEIRO LEVY BOQUADY, Democracia e internet: os impactos das mídias digitais nas eleições de 2018, cit., p. 48. 58 MANUEL CASTELLS, Redes de Indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet, Rio de Janeiro, Zahar, 2013, p. 10. 59 RAFAEL SANTOS OLIVEIRA/RENATA LEITE DA SILVA CRUZ/FERNANDA DOS SANTOS RODRIGUES SILVA, «Caça às bruxas às fake News: os possíveis desdobramentos da criminalização das “notícias falsas”», 362 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO Atualmente, vivemos em um estágio informacional sem precedentes, a obtenção de conhecimento torna-se possível das mais variadas formas. Tal exacerbação no volume de notícias recebidas diariamente pode colocar em dúvida a realidade dos acontecimentos, diminuindo o potencial da sociedade em distinguir o que é verdade e o que não é60. Sabe-se que um dos aspectos importantes para a efetivação da democracia é a liberdade de expressão, direito que é de grande valia em nossa sociedade; todavia, nos dias de hoje, pode-se observar que a liberdade na internet está assumindo formas manipuladoras que podem ir contra a própria democracia e direitos constitucionalmente previstos, como o direito à informação. Nesse sentido, vale discorrer sobre alguns aspectos relacionados ao direito à liberdade de expressão, bem como ao direito à informação, uma vez que são dois direitos que eventualmente colocam-se em embate, da mesma forma que ambos são de grande importância para o exercício pleno de uma democracia. A Convenção Europeia de Direitos do Homem, datada de 1950, traz, no seu art. 10.º, uma previsão pertinente sobre a relação entre o direito à informação e o direito à liberdade de expressão: “Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras […]”. Por sua vez, a Constituição da República Portuguesa, em seu art. 37.º, diz que: “1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”. No tocante ao Brasil, também encontramos, na Constituição Federal de 1988, dispositivos que resguardam esses direitos. O art. 5.º, em seus incisos IV e XIV, ressalva o direito à livre manifestação do pensamento e o direito de acesso à informação61. in Frabrício Bertini Pasquot Polido, Lucas Costa dos Anjos, Luiza Couto Chaves (org.), Políticas, internet e sociedade, Belo Horizonte, Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), 2019, p. 113. 60 EDUARDO MAGRANI/RENAN MEDEIROS OLIVEIRA, “A esfera pública (forjada) na era das fake News e dos filtros-bolha”, in Cadernos Adenauer XIX, n. 4, 2018, p. 11. 61 Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado Federal, 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm (acesso em 3/6/2020). 363 SCIENTIA IVRIDICA Destarte, sobrepesando legislações internacionais que abordam o tema da liberdade de expressão e do direito à informação, pode-se visualizar que tais direitos andam juntos, mas, ao mesmo tempo, e em determinadas situações, chocam-se um com o outro. Para ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS a liberdade de expressão possui duas faces, sendo que uma visa assegurar a liberdade de pensamento e a livre manifestação e a outra respeita ao direito dos demais indivíduos de receber tal manifestação, ou seja, de receber uma informação62. Nesse viés, observando a forma como a liberdade de expressão é utilizada atualmente, em algumas situações, para dar legalidade a discursos de ódio e fake news, percebe-se que tal sentido dado a ela entra em conflito com o direito à informação livre e sem vícios. Hoje pode-se perceber um emaranhado de relações sociais que vêm se modificando com o constante crescimento do uso das tecnologias e suas funções. O avanço de campanhas eleitorais na internet, junto ao crescente uso das plataformas sociais, trouxe ampla liberdade de comunicação; todavia, igualmente mostrou as dificuldades de controle da legalidade ou de garantia de um processo limpo no que concerne ao pleito eleitoral na internet. Estamos percebendo e vivenciando os problemas que o uso desregulado e ilimitado da internet pode trazer para a sociedade. Os discursos de ódio contra figuras públicas e a grave disseminação de fake news fomentam o desequilíbrio social, instalando uma espécie de cultura de pós-verdade. Atualmente, podemos perceber os efeitos massivos da desinformação até mesmo no âmbito da saúde mundial, onde muitas vezes com um viés inicial político, mas já adentrando no campo da saúde pública, há o exercício de uma influência; foi o que observamos, por exemplo, durante a pandemia de Coronavírus em 2020, em que uma grande gama de informações falsas circulou pela internet63. A Comissão Europeia, no Plano de Ação para a Democracia Europeia, elaborado em dezembro de 2020, expõe o perigo dessas aplicações na internet: 62 ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, “Liberdade de expressão e ideais antidemocráticos veiculados por partidos políticos – tolerância com os intolerantes?”, in André de Carvalho Ramos (coord.); Alice Kanaan [et al.], Temas do direito eleitoral no século XXI, Brasília, Escola Superior do Ministério Público da União, 2012, p. 17. 63 Comissão Europeia, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comitê Econômico e Social Europeu e ao Comitê das Regiões, Plano de ação para a democracia europeia, Bruxelas, 2020. 364 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO “[…] O impacto de algumas destas ações é exacerbado pela utilização de algoritmos opacos, controlados por plataformas de comunicação muito populares. A integridade das eleições foi ameaçada, o ambiente em que os jornalistas e a sociedade civil operam deteriorou-se e observaram-se esforços concertados para disseminar informações falsas e enganadoras e para manipular os eleitores, nomeadamente por parte de agentes estrangeiros. As próprias liberdades que procuramos defender, como a liberdade de expressão, foram usadas, em alguns casos, para enganar e manipular”. Para ROBERT DAHL, uma democracia plena é aquela onde a liberdade de expressão está presente, uma vez que é ela que possibilita que os cidadãos participem efetivamente da vida política, um ambiente onde possam manifestar as suas opiniões sem interferência estatal e possam debater sobre atos de política e governo, referindo ainda que “A livre expressão não significa apenas ter o direito de ser ouvido, mas ter também o direito de ouvir o que os outros têm para dizer.”64. Ademais, DAHL relata que a democracia exige uma fonte de informação alternativa, a fim de que haja uma compreensão esclarecida sobre a política, o que, consequentemente, não seria possível se a informação estivesse monopolizada nas mãos do próprio Governo ou de algum grupo específico. O que vemos hoje é a possibilidade de gerar informação nas mãos de todos, proporcionando grande plateia para aqueles que, eivados de má intenção, têm o propósito de levar desinformação à população. Deve-se ter em mente que ambos os direitos explanados acima são necessários para uma democracia e um não pode ser superado absolutamente em relação ao outro de forma permanente, necessitamos buscar um meio de equilíbrio, onde seja possível identificar e responsabilizar esses grupos ou indivíduos que geram informações com o fim de manipular ou desinformar a população. Neste sentido, o Plano de Ação para a Democracia Europeia relata: “É fundamental criar um ecossistema digital mais transparente e responsabilizável, que permita avaliar a amplitude, o alcance e o grau de coordenação subjacente às campanhas de desinformação. A UE apoiará o importante trabalho dos jornalistas, das organizações da sociedade civil e dos investigadores para manter 64 ROBERT DAHL, Sobre a democracia, trad. Beatriz Sidou, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2001, pp. 110-111. 365 SCIENTIA IVRIDICA um espaço de informação saudável e diversificado, nomeadamente no que respeita à verificação dos factos”65. A importância destes direitos para a matéria em questão reside também na proteção que proporcionam para a construção da identidade e a autodeterminação do indivíduo. Conforme aponta STEFANO RODOTÀ, “a plenitude da esfera pública depende diretamente da liberdade com a qual pode ser construída a esfera privada.”66. Neste ponto, observa-se que a propagação de informações falsas, somadas às habilidades da tecnologia em direcionar tais conteúdos, podem macular a livre formação do pensamento, afetando tanto o direito à liberdade de expressão quanto o direito à informação. As disputas pelo poder das sociedades democráticas atualmente passam pela política midiática. A digitalização de informações faz com que os indivíduos se vejam em constante imersão no mundo em rede; por consequência, a construção da realidade está intimamente ligada aos sinais que são recebidos e trocados neste universo. Tal troca contínua de interações na rede forma opiniões e guia os comportamentos e decisões67. A desinformação é um fenômeno multifacetado e de grande preocupação na atualidade, possuindo várias formas e intensidades, as chamadas fake news ou notícias falsas estão na base desse fenômeno informacional. De início, assevera-se que as fake news são de difícil conceituação, uma vez que se deve estar atento a uma questão pontual em seu conceito, qual seja, a supressão da liberdade de expressão e instalação de uma espécie de censura prévia. Ainda, insta dizer que a internet não criou as notícias falsas, tendo em vista que elas já existiam anteriormente no mundo offline; todavia, a forma como o mundo digital possibilitou uma maior circulação de informações agravou a disseminação dessas notícias, trazendo problemas com proporções que não se tinha antes68. 65 Comissão Europeia, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comitê Econômico e Social Europeu e ao Comitê das Regiões, Plano de ação para a democracia europeia, cit. 66 STEFANO RODOTÀ, A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje, cit., p. 115. 67 MANUEL CASTELLS, Ruptura: a crise da democracia liberal, trad. Joana Angélica d’Avila Melo, 1.ª ed., Rio de Janeiro, Zahar, 2018, p. 27. 68 RAFAEL SANTOS OLIVEIRA/RENATA LEITE DA SILVA CRUZ/FERNANDA DOS SANTOS RODRIGUES SILVA, «Caça às bruxas às fake News: os possíveis desdobramentos da criminalização das “notícias falsas”», cit., p. 116. 366 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO O funcionamento das fake news pode ser explicado com base na autonomia que a internet possui, elas funcionam independentemente de os receptores acreditarem veementemente na mensagem, uma vez que geralmente representam um posicionamento emocional, que atingirá um universo político altamente polarizado, instalando dúvidas ou reafirmando certezas nos indivíduos. SCHUMPETER69 explica tal pensamento, argumentando que o comportamento irracional foi recebendo maior atenção ao longo do tempo, apresentando, para tanto, duas teorias que demonstram a contrariedade da hipótese de racionalidade do pensamento. A primeira hipótese se refere ao comportamento humano sob influência de aglomeração, a qual ensejaria o desaparecimento súbito da moral e civilização de pensamento e sentimento, trazendo à tona comportamentos primitivos do homem. Ainda, ressalta o autor que tais acontecimentos não se dão somente em aglomerações físicas, mas também se aplicam a leitores de jornais, audiências de rádio, membros de partidos políticos, mesmo quando não se encontram fisicamente reunidos, levando a um estado de excitação, onde qualquer tentativa de argumentos racionais não faz com que esse grupo volte ao seu estado normal. Ainda, no segundo argumento sobre a fragilidade da racionalidade, o autor traz a noção de que uma afirmação, repetida de forma constante, pode valer mais do que um argumento racional, exemplificando isso com a sensibilidade do indivíduo sob influência da publicidade70. Há um grande esforço acadêmico a fim de conceituar o termo fake News, não havendo um consenso até o momento. Para a pesquisadora CLAIRE WARDLE71, da Universidade de Harvard, a razão pela qual está se lutando para conceituar a expressão fake news ou para substituí-la vem da noção de que se trata de algo mais que uma notícia, mas sim, sobre todo um ecossistema de informações. Ainda, WARDLE aborda que o termo “falso” não é apto para descrever os diferentes tipos de desinformação existentes. ALCOTT e GENTZKOW trazem um conceito geral do termo como sendo “sinais distorcidos não relacionados com a verdade”72. 69 JOSEPH SCHUMPETER, Capitalismo, Sociedade e Democracia, 1.ª ed., Le Books, 2020, edição Kindle, pp. 340-341. 70 JOSEPH SCHUMPETER, Capitalismo, Sociedade e Democracia, cit., p. 341. 71 CLAIRE WARDLE, Fake News. It’s complicated, disponível em https://medium.com/1stdraft/fake-newsits-complicated-d0f773766c79 (acesso em 2/11/2020). 72 HUNT ALCOTT/MATTHEW GENTZKOW, “Social media and fake News in the 2016 election”, in Journal of Economic Perspectives, Pittsburgh, American Economic Association, v. 31, n. 2, 2017, disponível em https://pubs.aeaweb.org/doi/pdfplus/10.1257/jep.31.2.211 (acesso em 2/11/2020). 367 SCIENTIA IVRIDICA Para o presente estudo, usar-se-á o conceito apresentado por BRAGA, o qual conceitua as fake news como a “disseminação, por qualquer meio de comunicação, de notícias sabidamente falsas com o intuito de atrair a atenção para desinformar ou obter vantagem política ou econômica”73. FORTES e BALDISSERA74 salientam que a produção deste tipo de conteúdo é focada na exploração do ambiente online e das suas possibilidades de rápida disseminação, anonimato, existência de diversas fontes de informação, dificuldade de verificação dos factos e ainda da aplicação da política de atenção e engajamento, que se utiliza do âmbito emocional do indivíduo. Ademais, a difusão da expressão fake news e a sua diversidade de conceitos contribui para o dilema central de sua regulação, uma vez que se torna difícil estabelecer o que são notícias falsas e o que são opiniões ou interpretações próprias e, ainda, a questão da exposição de notícias verdadeiras quando colocadas fora de contexto. Dessa forma, quando se tenta delimitar um controle sobre as fake news, tal tentativa choca com o direito à liberdade de expressão, tendo em vista que encontrar um ponto de equilíbrio entre o que é a verdade e o que não é, em um mundo cheio de informações, constitui-se em uma tarefa complexa75. Existem três termos ao redor da questão que geram certa insegurança e confusão: a desinformação, as fake news e a pós-verdade. Conforme frisado por FORTES e BALDISSERA76, a desinformação engloba a ideia de fake news e outros componentes além dela, considerando todo um contexto informacional que pode levar ao engano do indivíduo. Por sua vez, o termo pós-verdade, definido como a palavra do ano em 2016 pelo Oxford Dictionaries, pode ser conceituado como “circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”, ou seja, é um fenômeno onde se observa a RENÊ MORAIS DA COSTA BRAGA, “A indústria das fake News e o discurso de ódio”, in Rodolfo Viana Pereira (org.), Direitos Políticos, liberdade de expressão e discurso de ódio, vol. 1, Belo Horizonte, IDDE, 2018, p. 205. 74 VINÍCIUS BORGES FORTES/WELLINGTON ANTONIO BALDISSERA, “Regulação das fake News e liberdade de expressão: uma análise a partir da reclamação 22.328 do Supremo Tribunal Federal”, in Revista de direitos sociais e políticas públicas (UNIFAFIBE), v. 7, n. 3, 2019, p. 379. 75 VINÍCIUS BORGES FORTES/WELLINGTON ANTONIO BALDISSERA, “Regulação das fake News e liberdade de expressão: uma análise a partir da reclamação 22.328 do Supremo Tribunal Federal”, cit., pp. 376-380. 76 VINÍCIUS BORGES FORTES/WELLINGTON ANTONIO BALDISSERA, “Regulação das fake News e liberdade de expressão: uma análise a partir da reclamação 22.328 do Supremo Tribunal Federal”, cit., p. 381. 73 368 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO busca extrema pela validação da opinião pessoal em detrimento da análise crítica de dados confiáveis e verdadeiros que possam destoar da opinião particular. Dessa forma, consegue-se estabelecer uma relação entre os três termos, vez que a desinformação é um fenômeno comunicacional maior, que abrange as fake news, porém, possui outros elementos além dela e, por fim, o termo pós-verdade é identificado como um período de mudança social que estamos presenciando, onde os indivíduos, aparentemente, perderam a capacidade de distinguir e equilibrar factos verdadeiros de emoções e opiniões pessoais. Adentrando no tema pertinente ao presente trabalho, questiona-se como as fake news, como forma de desinformação, podem influenciar de modo mais acentuado ainda o processo democrático. Conforme já explanado nos capítulos anteriores, os dados pessoais podem ser utilizados para manipulação e direcionamento de conteúdo para um público específico, logo, quando levamos em conta conteúdos como fake news e desinformação como forma de estratégia política, tem-se que a democracia pode se voltar contra si mesma, amparando-se na liberdade de expressão, interrompendo o funcionamento da esfera pública, fomentando a polarização, os discursos de ódio, a desinformação e, por consequência, o comportamento de uma coletividade. A tentativa de se obter vantagem política por meio de mentiras não é novidade, sempre houve no mundo político tentativas de fazer com que o oponente perca o apoio do povo, para tanto, atribui-se factos ou características que o podem prejudicar. Posto isto, igualmente não é notícia nova que a internet alterou e vem alterando os meios de comunicação, refletindo na forma como a sociedade organiza os seus pensamentos77. Dessa forma, apesar de que a divulgação de acontecimentos falsos não se caracteriza um processo novo, as possibilidades que a internet dispõe para a transmissão desse conteúdo trazem novos dilemas sociais. A sociedade em rede trouxe o acesso à informação de forma rápida e prática; todavia, trouxe também a possibilidade de qualquer um contribuir com essa informação, independentemente de sua veracidade ou não. FERREIRA demonstra isso com o seguinte trecho: “A convocação dos protestos que derrubaram a ditadura egípcia na Primavera Árabe trafegaram na mesma fibra ótica que notícias absurdamente falsas como [...] 77 RENÊ MORAIS DA COSTA BRAGA, “A indústria das fake News e o discurso de ódio”, cit., pp. 206-207. 369 SCIENTIA IVRIDICA “Pope Francis shocks world and endorses Donald Trump for presidente” (Papa Francisco choca o mundo e apoia Donald Trump para presidente) [...]. Um único usuário, independente de sua credibilidade, pode atingir rapidamente tantas pessoas quanto uma consagrada rede de televisão internacional, como a CNN.”78. Nessa conjuntura, conforme aponta CASTELLS79, atualmente há uma política de mídia, que é composta, não espantosamente, pelos veículos de mídia e a política, que se apoia na questão de que as pessoas tomam suas decisões com base nas imagens e informações que são processadas pela mídia cotidianamente. Assim, considerando que as eleições são períodos determinados, mas que levam em conta informações que já existiam na mente do eleitor, baseando-se em uma estrutura de interesses e valores preexistentes, as campanhas eleitorais vão apenas delinear quais são esses interesses, em forma de informação, e, a partir disso, farão propagandas que ativarão ou desativarão os processos emocionais e cognitivos da população. Diante do exposto acima, em um contexto de desinformação, quando as fake news são utilizadas como estratégia política previamente desenhada com o intuito de modificar opiniões e influenciar decisões, podemos ter uma problemática a ser resolvida, como explica CASTELLS: “[...] há outra forma de crise menos aparente. Se aceitarmos a ideia de que a forma crítica da geração de poder ocorre por meio da configuração da mente humana, e que esse processo depende em grande medida da comunicação e, em última instância, da política da mídia, então a prática da democracia é questionada quando há uma dissociação sistêmica entre poder de comunicação e poder representativo”80. A constante descrença nos veículos de imprensa tradicionais, a vinda das plataformas digitais como distribuidoras de conteúdo, a má utilização dos dados pessoais dos usuários e as fake news são pontos relacionados que colaboraram para um estado de relativização da verdade, uma Era onde tanta informação disponível pode vir a se transformar em desinformação, uma fase em que os regimes democráticos são postos em fronte. Cada vez mais é possível observar decisões políticas marcadas pela desinformação, nos últimos anos tivemos alguns exemplos disso, o Brexit, a eleição esta- 78 RICARDO RIBEIRO FERREIRA, “Redes de mentiras: a propagação de fake News na pré-campanha presidencial brasileira”, in Observatório (OBS*), v. 12, n. 5, 2018, p. 140. 79 MANUEL CASTELLS, Ruptura: a crise da democracia liberal, cit., p. 282. 80 MANUEL CASTELLS, O poder da comunicação, cit., p. 352. 370 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO dunidense de 2016 e até mesmo a eleição brasileira de 201881. Assim, os esforços coletivos devem ser no sentido de barrar o entretenimento lucrativo baseado na limitação da autonomia pessoal, sempre objetivando uma internet livre, como espaço de construção da autonomia da comunicação, tendo em vista que as redes constituem a base do novo espaço público da Era da Informação82. Considerações finais Lidar com mudanças nem sempre é fácil, as alterações resultantes dos avanços tecnológicos modificaram a forma como emitimos e recebemos informações, alterando, assim, o modo como a coletividade comunica-se entre si. Desde a implementação da internet e sua posterior expansão na área doméstica até os dias atuais presenciamos grandes saltos da informática, onde os smartphones, notebooks e outros equipamentos passaram a nos acompanhar vinte e quatro horas por dia, acumulando informações das mais variadas fontes, indo desde um cadastro realizado em algum site, passando pela coleta de cookies nos navegadores que acessamos, até a captura de nossas atitudes em plataformas digitais, como o Facebook. Valendo-se do exposto acima e observando os acontecimentos recentes envolvendo dados pessoais e eleições para cargos políticos, o presente estudo procurou estabelecer uma relação entre os dados pessoais e a democracia, buscando abordar como a utilização indevida dos dados pessoais pode influenciar o comportamento, a partir do estabelecimento de um perfil da personalidade do indivíduo, bem como sua consequente interferência no processo democrático. Nesse viés, percebeu-se que os dados pessoais são considerados o novo petróleo, formando um novo tipo de economia global, bem como se observou que estes são diariamente disponibilizados e capturados nas redes digitais, propiciando o seu tratamento e utilização para os mais variados fins, desde o aparentemente simples marketing publicitário para vendas de produtos, até a utilização na área das campanhas eleitorais, com informações capazes de alterar e conduzir comportamentos. 81 RICARDO RIBEIRO FERREIRA, “Redes de mentiras: a propagação de fake News na pré-campanha presidencial brasileira”, cit., p. 140. 82 MANUEL CASTELLS, O poder da comunicação, cit., p. 469. 371 SCIENTIA IVRIDICA Seguindo no estudo, verificou-se que, com a evolução das técnicas de processamento de dados, os detentores das informações podem obter um perfil da personalidade de um indivíduo, baseando-se no rastro de informações que são por ele deixadas, sendo que, em posse desse aglomerado de dados, pode-se, então, realizar uma organização de um padrão comportamental, que logrará prever tendências de atitudes futuras. Após esse processo, as empresas especialistas na publicidade comportamental elaboram materiais informacionais específicos que serão direcionados de acordo com um perfil determinado. Assim, tem-se que há uma diminuição na esfera de liberdade do indivíduo, uma vez que este é enxergado por meio de um perfil automaticamente criado com base em dados que, na grande maioria das vezes, não se há conhecimento sobre a sua captura e utilização. Neste sentido, deparamo-nos, ainda, com uma prática que vem se espalhando atualmente, o microtargeting comportamental, o qual viabilizará o direcionamento de conteúdos preestabelecidos à população, interferindo, por fim, na autodeterminação informativa do cidadão, uma vez que construirá uma barreira na chegada de informações limpas, cerceando sua livre construção da personalidade. Partindo disto, questionou-se como tais utilizações dos dados pessoais pela sociedade em rede pode colocar em risco os sentidos da democracia, sendo, para tanto, estabelecida uma ligação entre a internet, como meio de comunicação, dados pessoais e o processo democrático. Buscando exatamente trazer esse aspecto da discussão, observou-se que a internet é um dos meios de comunicação mais utilizados no mundo nos dias atuais, bem como que implementou mudanças na forma como o mundo compartilha informações entre si, permitindo que se concentre na mesma pessoa as funções de receptor e emissor de uma informação. Outrossim, reconheceu-se que a comunicação e a democracia possuem uma inerente ligação e as transformações de uma podem afetar a outra. Neste âmbito da discussão, o presente estudo mostrou que o direcionamento de determinados conteúdos nas redes pode impactar os usuários em suas atitudes e sentimentos, balizando os comportamentos externos. Outrossim, restou demonstrado que a compreensão da política é feita emocionalmente, onde a fusão de sentimentos e pensamentos racionais destina o modo como as decisões são tomadas. Ainda, para corroborar a presente discussão, com intuito de demonstrar como a sociedade informacional pode trazer risco a direitos fundamentais do Homem, abordou-se o fenômeno da desinformação, o qual é formado pelas fake news, den- 372 A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO tre outros elementos, e é observado a partir de uma época denominada pós-verdade, onde se pode observar que existe a prevalência de opiniões irracionais e particulares perante factos científicos, racionais e condizentes com a realidade. Assim, diante de todo o exposto, foi possível concluir que a captura de dados pessoais, a cada dia mais aprimorada e eficiente, e o seu posterior tratamento para formação de um perfil virtual da personalidade, abre oportunidades para a utilização indevida das informações pessoais, onde empresas especializadas em marketing eleitoral poderão organizar campanhas para públicos específicos, abordando assuntos e veiculando conteúdos que, com a análise prévia das tendências de comportamento, conduzirão o eleitor a uma atitude esperada. A partir disso se pode perceber que vários direitos do indivíduo são postos em xeque, como o direito à informação clara e correta, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, o direito à liberdade de expressão, o direito à privacidade e o direito à autodeterminação informativa, todos eles vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana e necessários para o exercício de uma democracia plena. Destaca-se que a democracia é exercida pela livre vontade de um povo e respaldada pela liberdade de expressão desde o início de sua concepção; todavia, isto significa que a liberdade de expressão deve ser garantida e prestigiada sempre que mantiver sua relação positiva com a democracia, ou seja, não se tolera que em nome da democracia se utilize da liberdade para minar a própria democracia. Evidentemente ainda será necessário avançar muito em relação ao que isso significa para os conflitos concretos aos quais as democracias estarão submetidas, mas, desde logo, é possível perceber que o atual sistema possui problemas fundamentais que precisam ser endereçados. De um lado, o controle absoluto das plataformas por parte de poucas empresas resulta em um oligopólio capaz de direcionar a informação e opinião em escala global, de outro, a atuação de agentes que visam solapar as possibilidades de aprofundamento de uma democracia pluralista mediante a utilização das redes em campanhas de desinformação, como a que se verificou recentemente no Brasil, nas eleições presidenciais de 2018. Sabe-se que a internet é um meio de comunicação que busca trazer maior liberdade à sociedade; porém, de igual modo abre as portas para que novos riscos apareçam. Parece-nos que o futuro da sociedade se encontra sujeito à condução que nós daremos para ela. 373